A mistura do público com o privado deveria dar cadeia
Especialistas afirmam que por trás do problema está a certeza que a impunidade provoca
(Entrevista com cientista político David Fleischer, da UnB)
Marita Boos
A perspectiva da impunidade é, para especialistas, uma das principais razões para que políticos brasileiros façam uso, com tanta desenvoltura, de bens públicos como se fossem privados.
Segundo o professor titular de Filosofia e Ética da Unicamp, Roberto Romano, a prática vem da formação do Estado brasileiro, construído sob o sistema absolutista, onde não existe separação do “tesouro do rei do tesouro público”.
— Os nossos políticos se consideram pequenos nobres.
Sobretudo os capitães de oligarquias, que agem como se fossem proprietários da coisa pública — afirma Romano.
O cientista político David Fleischer, da UnB, considerou a conversa entre o presidente do Senado, JOSÉ SARNEY (PMDB-AP), e seu filho Fernando Sarney, gravada pela Polícia Federal, muito grave. Para ele, prova a falta de decoro parlamentar cometida pelo senador.
— Essa conversa evidencia que eles acham que o Brasil é deles.
Pensam assim: “Vamos usar nosso poder e influência para manipular a máquina federal em favor da família, dos amigos.
Vou fazer com essa propriedade o que quiser” — diz Fleischer, ressaltando que a confusão entre público e privado é comum não só em nível federal, mas também no estadual e municipal.
Os dois professores fazem críticas aos mecanismos de proteção jurídica a que têm acesso os políticos: — A mistura do público com o privado deveria dar cadeia, mas, no Brasil, não dá, infelizmente. Temos aqui o conceito de trânsito e julgado, foro privilegiado, réu primário. O jurídico está cheia de lacunas que faz com que o rico leve até 20 anos para ser julgado em ultima instância — lamenta Fleischer.
— Os políticos não teriam essa ousadia de tratar de coisas públicas como se fossem coisas deles se não fosse o privilégio do foro. Com essa ficção de julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal), eles estão livres e soltos para definir o limite de território da casta deles — diz Romano.
Um deboche ao estado democrático de direito. Assim o professor da Unicamp classificou a alegação dos advogados de Sarney de que houve quebra de privacidade na divulgação dos diálogos entre pai e filho: — Dizer que é privada uma conversa que trata de ato secreto para contratação para o Senado...
Fleischer lembra que pesquisas mostram que os brasileiros são lenientes com a mistura do público com o privado.
— É a cultura do jeitinho, da boquinha. É comum na cabeça do brasileiro porque ele mesmo ou os amigos já fizeram.
Para o cientista político, Sarney, ao deixar a Presidência da República, procurou se eleger senador para se proteger, evitar processos, perpetuar seu clã no poder e abrir novos negócios.
— Agora estamos vendo a teia que ele formou. É como se fosse uma história sem fim.
Romano acredita que o Brasil só conseguirá se livrar dessa prática com uma reforma econômica, fiscal, que garanta aos estados e municípios maior participação na arrecadação.
— Do jeito que é, com os políticos como responsáveis por levar verbas para suas cidades, seus estados, o poder regional deles é grande. O eleitor pensa que ele traz recursos para sua região. Isso explica a permanência do Jader Barbalho, o império do ACM, Sarney, grupos que todo presidente da República tem que enfrentar. Permanece o “é dando que se recebe”.
Para o filósofo, a população fica refém do político e se ilude, vivendo uma correlação como a existente entre o tráfico de drogas e os moradores das favelas: de medo e esperança.
— Faltam palavras para descrever a degradação e a corrupção ética do Estado brasileiro. Precisaria da capacidade de um Dante Alighieri, porque é um inferno — lamenta Romano, citando o escritor e político italiano autor de “Divina Comédia”.
O Globo
Página: Internet
Data: 24.07.2009 – p. 8
Especialistas afirmam que por trás do problema está a certeza que a impunidade provoca
(Entrevista com cientista político David Fleischer, da UnB)
Marita Boos
A perspectiva da impunidade é, para especialistas, uma das principais razões para que políticos brasileiros façam uso, com tanta desenvoltura, de bens públicos como se fossem privados.
Segundo o professor titular de Filosofia e Ética da Unicamp, Roberto Romano, a prática vem da formação do Estado brasileiro, construído sob o sistema absolutista, onde não existe separação do “tesouro do rei do tesouro público”.
— Os nossos políticos se consideram pequenos nobres.
Sobretudo os capitães de oligarquias, que agem como se fossem proprietários da coisa pública — afirma Romano.
O cientista político David Fleischer, da UnB, considerou a conversa entre o presidente do Senado, JOSÉ SARNEY (PMDB-AP), e seu filho Fernando Sarney, gravada pela Polícia Federal, muito grave. Para ele, prova a falta de decoro parlamentar cometida pelo senador.
— Essa conversa evidencia que eles acham que o Brasil é deles.
Pensam assim: “Vamos usar nosso poder e influência para manipular a máquina federal em favor da família, dos amigos.
Vou fazer com essa propriedade o que quiser” — diz Fleischer, ressaltando que a confusão entre público e privado é comum não só em nível federal, mas também no estadual e municipal.
Os dois professores fazem críticas aos mecanismos de proteção jurídica a que têm acesso os políticos: — A mistura do público com o privado deveria dar cadeia, mas, no Brasil, não dá, infelizmente. Temos aqui o conceito de trânsito e julgado, foro privilegiado, réu primário. O jurídico está cheia de lacunas que faz com que o rico leve até 20 anos para ser julgado em ultima instância — lamenta Fleischer.
— Os políticos não teriam essa ousadia de tratar de coisas públicas como se fossem coisas deles se não fosse o privilégio do foro. Com essa ficção de julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal), eles estão livres e soltos para definir o limite de território da casta deles — diz Romano.
Um deboche ao estado democrático de direito. Assim o professor da Unicamp classificou a alegação dos advogados de Sarney de que houve quebra de privacidade na divulgação dos diálogos entre pai e filho: — Dizer que é privada uma conversa que trata de ato secreto para contratação para o Senado...
Fleischer lembra que pesquisas mostram que os brasileiros são lenientes com a mistura do público com o privado.
— É a cultura do jeitinho, da boquinha. É comum na cabeça do brasileiro porque ele mesmo ou os amigos já fizeram.
Para o cientista político, Sarney, ao deixar a Presidência da República, procurou se eleger senador para se proteger, evitar processos, perpetuar seu clã no poder e abrir novos negócios.
— Agora estamos vendo a teia que ele formou. É como se fosse uma história sem fim.
Romano acredita que o Brasil só conseguirá se livrar dessa prática com uma reforma econômica, fiscal, que garanta aos estados e municípios maior participação na arrecadação.
— Do jeito que é, com os políticos como responsáveis por levar verbas para suas cidades, seus estados, o poder regional deles é grande. O eleitor pensa que ele traz recursos para sua região. Isso explica a permanência do Jader Barbalho, o império do ACM, Sarney, grupos que todo presidente da República tem que enfrentar. Permanece o “é dando que se recebe”.
Para o filósofo, a população fica refém do político e se ilude, vivendo uma correlação como a existente entre o tráfico de drogas e os moradores das favelas: de medo e esperança.
— Faltam palavras para descrever a degradação e a corrupção ética do Estado brasileiro. Precisaria da capacidade de um Dante Alighieri, porque é um inferno — lamenta Romano, citando o escritor e político italiano autor de “Divina Comédia”.
O Globo
Página: Internet
Data: 24.07.2009 – p. 8
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