“Vivíamos em um momento de entrevistar personalidades que eram assassinadas”. Beatriz Bissio fala sobre os Cadernos do Terceiro Mundo, revista latino-americana criada durante a Guerra Fria.
Por Adriano Belisário - Revista de História da Biblioteca Nacional.
Beirute, 1982. Ainda em destroços por conta dos bombardeios comandados por Ariel Sharon, o estádio Camille Chamoun fora identificado como um paiol de explosivos e munições. Enquanto parte da mídia repetia a justificativa israelense para os ataques, um grupo de jornalistas latino-americanos saía às ruas para checar os escombros do ginásio. Nem sinal de armas. Nele, encontraram apenas alimentos doados pela Cruz Vermelha para os palestinos.
Cofundadora da revista Cadernos do Terceiro Mundo, a jornalista uruguaia Beatriz Bissio protagonizou o episódio. Através dele, é possível entrever um resumo da história de uma publicação que tratou dos países em desenvolvimento a partir de seu próprio ponto de vista. Beatriz cobriu ainda as guerras civis em Angola e Moçambique, além de conflitos em vários outros países da África e Oriente Médio, como a guerra entre Irã e Iraque. Criado em 1974 na Argentina, os Cadernos chegaram a ser publicados em três idiomas e distribuídos em dezenas de países.
Naturalizada brasileira, Beatriz atualmente busca apoio para a digitalização completa do acervo dos Cadernos do Terceiro Mundo. Hoje, é possível ter acesso apenas a uma seleção de reportagens célebres em um CD produzido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que pode ser solicitado através do Laboratório de Pesquisa e Práticas de Ensino da instituição. Na entrevista abaixo, além de recordar fatos marcantes da história dos Cadernos, a jornalista comenta sobre a volta da publicação, a política na América hoje e a perseguição das ditaduras latino-americanas.
- Você entrevistou diversas vezes líderes importantes, como Yasser Arafat, Saddam Hussein e Fidel Castro. Você se recorda de alguma destas entrevistas especialmente?
A entrevista com Samora Machel, presidente de Moçambique assassinado. Os sulafricanos confundiram os aparelhos do avião presidencial que levava Samora para Moçambique. Atraíram o avião para um território dentro da África do Sul e fizeram-no colidir com uma montanha. É o que dizem, mas ele pode ter sido abatido. Samora Machel era um homem extraordinário. Foi o primeiro presidente de Moçambique independente e tinha uma personalidade muito alegre.
Por que podemos dizer que foram os sulafricanos? Nunca encontraram bem os destroços, não permitiram uma investigação internacional e o governo moçambicano apoiava abertamente a luta do Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, contra o governo de minoria branca da África do Sul. Também era aliado da União Soviética e a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique] declarava como linha política a opção de construir uma sociedade socialista. Eram motivos suficientes para um regime como o do apartheid ver em Samora um inimigo a ser descartado.
Arafat e Fidel também eram fascinantes. Com Arafat, a entrevista era sempre uma surpresa, um ataque do coração. Éramos chamados de madrugada com um telefonema e falavam: “Arafat está esperando”. Descíamos do hotel e um grupo nos levava por locais que a gente desconhecia. Era sempre em um lugar diferente. Arafat dormia pouquíssimo, sempre trabalhando. Não dormiu dois dias no mesmo lugar durante anos.
Há suspeitas bem fundadas de que tanto ele quanto o irmão morreram envenenados. Foram as mesmas circunstâncias e a doença não tinha antecedentes, nem nada que a justificasse. No Iémen, entrevistamos também um primeiro ministro que logo depois foi morto. Vivíamos em um momento de entrevistar personalidades que eram assassinadas, de partilhar momentos dramáticos com as populações e também de transmitir isso para uma América Latina tão distante.
- Como se deu a fundação dos Cadernos?
Conheci Neiva Moreira [cofundador dos Cadernos e líder da esquerda brasileira] no Uruguai. Eu fazia Engenharia Química e editava o jornal dos estudantes. Era incendiário, incentivava todas as greves e manifestações. [risos] E isso em 1969, já próximo do Uruguai sucumbir ao golpe de estado. Em 72, um colega me avisou que um jornal da recém formada Frente Ampla estava convocando estagiários. O jornal se chamava Ahora e Neiva era o diretor. Mas ele era exilado e não podia trabalhar em um meio de comunicação. Então, quem assinava a direção era Oscar Bruschera, um historiador uruguaio muito reconhecido.
Larguei Química e me apaixonei pelo jornal. Acabei me apaixonando também pelo diretor do jornal. [risos] Depois do golpe em 73, Neiva não podia mais ficar no Uruguai, pois já tinha sido advertido por vários amigos que o nome dele circulava nos interrogatórios. A inteligência sabia que era ele que dirigia o jornal e de seus vínculos com movimentos de resistência na América Latina. Então, tivemos que sair de lá e aí começou a trajetória dos Cadernos
- Vocês foram para Argentina depois do golpe no Uruguai?
Neiva foi para Argel cobrir a Conferência dos Não-Alinhados. Foi um encontro muito importante que definiu uma estratégia de valorização das matérias-primas e lançou a proposta de uma nova ordem econômica e informativa internacional. Decidiu-se não aceitar uma mídia internacional que fornece informações sobre os países de terceiro mundo através das agências de notícias europeias e norte-americanas. Os Cadernos surgiram dessa exigência de um jornalismo com olhar próprio. Ao voltar de lá, o Neiva iria me encontrar no Chile, onde pretendíamos nos estabelecer. Só que durante a Conferência acontece o golpe contra Allende, então Neiva decide ir para o Peru. E eu fui encontrá-lo.
- E quando foram do Peru para a Argentina?
No Peru, o Neiva fez o livro ‘O Modelo Peruano’. Ele se interessou pela forma como o general Velasco Alvarado estava gerindo um processo socializante no país. Entre outras coisas, ele teve a audácia de expropriar todos os meios de comunicação da direita. Isso que Chavez fez não é nada perto do que Velasco fez no Peru nos anos 70. Ele expropriou todos os jornais e entregou aos sindicados por categoria. O jornal El Comercio, que era como o Estadão, foi entregue aos camponeses, por exemplo.
Fomos para Buenos Aires no final de 1973. Através de amigos, conhecemos Julia Constella, editora da La Linea, que publicou o Modelo Peruano. Também conhecemos Pablo Piacentini, que era da extrema esquerda argentina e se interessou nas crônicas que Neiva trouxe de Argel. Desse convívio, surge a ideia de fazer a revista.
- Como foi o período na Argentina?
A Argentina viva uma clima de confronto permanente. Os Cadernos tiveram um lançamento de grande sucesso. Editamos nove números, mas a revista chamou atenção dos setores conservadores. Pablo passou a constar em listas de condenados a morte. Era uma advertência para que saíssemos do país, caso contrário poderíamos ser sequestrados e assassinados.
Então, botaram uma bomba na La Linea, um aviso mais que claro mostrando que a situação estava se colocando em termos insustentáveis. Neiva também já tinha sido advertido por amigos que falaram para sairmos de nossa casa porque estávamos sendo vigiados. Dormíamos cada noite em um hotel diferente. Certa vez, uns homens mascarados arrombaram o quarto do hotel e entraram com metralhadoras. Falaram que tínhamos 24 horas para sair do país. Entramos na Embaixada do Peru e pegamos o primeiro avião para Lima. A Julia consegue manter a revista por alguns números ainda, mas depois também foi embora da Argentina e durante 1975 os Cadernos não saem.
Em março do ano seguinte, já estamos no México e relançamos a revista. Aí continua sem interrupções até 2005. Lá, conseguimos apoio do chileno Juan Somavía, hoje presidente da Organização Internacional do Trabalho. Ele estava exilado e dirigia um instituto de pesquisas que estudava as multinacionais e alguns dos pesquisadores estavam focados na comunicação. Quando chegamos com a proposta, eles viram que era algo bem próximo do que eles desejavam e nos apoiaram.
- Além da invasão no hotel em Buenos Aires, houve casos de outros ataques aos membros da revista?
Muitos colaboradores da Argentina estão desaparecidos até hoje. Teve um correspondente que foi assassinado no sudeste asiático. Era o Malcolm Caldwell, jornalista e academico britânico, marxista declarado, autor de numerosa obra sobre as lutas de libertação da Ásia, onde morou por longos anos. Foi assassinado em dezembro de 1978 em Phnom Penh, onde tinha sido asíduo visitante desde que, em 1975, integrara o primeiro grupo de jornalistas ocidentais a visitar Cambodja, chamada Kampuchea na altura, depois de sua libertação. Na época se disse que o assassinato ocorrera por ordem de Pol Pot, governante do país, pouco depois de ambos terem tido um encontro, em 1978.
Outro colaborador foi o argentino Luis Guagnini, que foi assassinado em Buenos Aires com 33 anos, depois de ter sido sequestrado com a mulher, liberada dos dias depois, em dezembro de 1977. Aparentemente, ele ficou preso, torturado, até algum tempo depois. Teria sido um dos presos políticos que, drogados, foram jogados no mar pelos militares argentinos, como denunciou um outro colaborador de Cadernos, hoje um dos mais importantes jornalistas no tema das violações aos direitos humanos durante a ditadura argentina, Horacio Verbitsky.
- Isso dentro do contexto da Operação Condor, que também é acusada de ser responsável pela morte de João Goulart, não é?
Isso. O Neiva sempre acreditou que Jango foi assassinado, mesmo quando a viúva dele ainda negava. Ela dizia que estava próxima dele e sabia dos medicamentos, mas para uma operação deste porte, que só hoje estamos vendo a ponta do iceberg, infiltrar alguém entre pessoas da família e trocar um medicamento não era algo fora de cogitação. A lógica faz acreditar na tese do assassinato. É muito suspeito que das pessoas que, das pessoas que pudessem ter tido um papel de peso no retorno à democracia, vários tenham morrido em circunstâncias tão trágicas.
- E quando a revista chegou ao Brasil?
Os Cadernos ficaram no México até 1980, quando a redação central foi para o Rio de Janeiro. A primeira edição portuguesa foi publicada em 1975, um número especial totalmente dedicado à independência de Angola. Em 1978, começou a ser feita uma edição em português em Lisboa, que permaneceu sendo a única até 1980. Era destinada principalmente aos leitores dos países da África lusófona. Em 1980, quando é lançada a edição brasileira, passam a coexistir duas edições em português. Essa situação dura vários anos. Os angolanos e moçambicanos foram unânimes: “Vai dar um curto circuito no leitor se a gente ensinar uma gramática que não é a que usamos”. Fora o fato que a própria ortografia era diferente. Então, era necessário fazer esse esforço.
- Como era a equipe?
Nunca foi muito grande. No auge, tivemos entre redação e centro de documentação cerca de trinta pessoas. Dávamos muito importância à documentação. Chegamos a ter nove pesquisadores. O jornalismo que fazíamos exigia um apoio para checar diferentes fontes. Às vezes, cada matéria de capa era trabalhada com até quatro meses de antecedência. O centro de documentação era um grande diferencial. Muito dos estagiários daquela época estão em lugares chaves da mídia nacional hoje. Além de jornalismo, também fizemos jornalistas.
- Em quais circunstâncias ocorreu o fim dos Cadernos em 2005? É possível uma volta?
Os Cadernos deixaram de circular por absoluta inviabilidade financeira. Entre as várias causas, uma das principais foi a circunstância crítica da indústria editorial a partir da era Collor, quando houve um grande aumento dos custos de produção. Ninguém ajudou com publicidade oficial e também não tivemos sucesso com a procura por publicidade de empresas privadas. A cada número, como bola de neve, as dívidas aumentavam...
Todos os fundadores estão vivos, mas sinto que os Cadernos tiveram seu ciclo. Pessoalmente, não gostaria de voltar com a revista. Há uma espécie de mito e lidar com mitos é diferente de lidar com questões concretas. Se não tivesse parado, teria prazer de continuar. Mas, quando me deparo com o desafio de relançar, sempre acho que não alcançaria o tipo de jornalismo que cobram. Queria lançar uma publicação que pudesse ser um elo com os Cadernos, algo comprometido com as causas sociais e o futuro independente e soberano das nações. Assim, estaria no trilho dos Cadernos, mas sem ser uma continuação.
- Como você vê a América hoje, em especial a dupla Chávez e Obama?
Com relação a Chávez, é possível ter críticas a um certo histrionismo, uma falação imprudente para um chefe de Estado. Mas ele está enfrentando interesses muito poderosos. Já foi seqüestrado, ameaçado de morte e teve um golpe financiado pelos Estados Unidos. Não sei se a solução ideal para conter uma mídia que no caso da Venezuela já estava de fato completamente ligada aos conservadores é o que ele fez, mas um governo cercado por uma imprensa conspirando com militares e serviços de inteligência de países estrangeiros tem o direito de se preservar.
Sobre Obama, evidentemente Bush deixou um ressentimento muito grande fora e dentro dos Estados Unidos. A mídia o coloca num posto de salvação, mas não sabemos se ele vai ter a audácia e o peito de enfrentar o establishment norte-americano. Não é fácil fazer uma política de estado que transcenda partidos. Mudar para inglês ver é uma coisa. Mudar no âmago para construir uma relação de parceria com países implica questões que acho que os Estados Unidos ainda não estão. Talvez, Obama coloque os primeiro tijolos de uma construção que virá depois.
- E Cuba após Fidel?
Estive no ano passado em Cuba. O alto nível de educação talvez o torne o país da América Latina mais perto daquilo que chamamos de construção da cidadania, mas é algo contraditório porque há um regime de partido único e que até pouco tempo tratava questões como a homossexualidade de uma forma que não seria o que a gente esperava. No entanto, Cuba tem uma população altamente politizada e com um bom nível de informação. Ao contrário daqui, os meios de comunicação não apostam no entretenimento. Em Cuba, a maior parte do tempo a mídia trabalha em cima de problemas, como análises da crise global ou da situação da América Latina. Eles podem não estar absolutamente satisfeitos com o regime, mas eu diria que nas questões essenciais eles estão de acordo.
Quando Fidel não estiver mais aqui, virá uma modalidade diferente de governo. Já vimos que o estio de Raul não é o mesmo. Como me disse um taxista, Fidel é um homem que nasce uma vez de dois em dois séculos. Ele é tão maior que Cuba que vive pensando nos problemas da humanidade. Raul não tem essa dimensão. Para bem dos cubanos, ele é mais atento aos pequenos problemas de Cuba. Acho que Cuba não terá grandes viradas, mas uma forma diferente de lidar com as coisas. Até mesmo com os Estados Unidos, que também já mostram uma maneira diferente de lidar com Cuba.
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