Jhonatan
Almada, historiador, escreve às sextas-feiras no Jornal Pequeno
A velha Europa que nos
legou tanto em termos de civilização e humanismo teve seus altos e baixos ao
longo da história. A mesma Europa do Renascimento e das Revoluções, foi a
Europa da Inquisição e do Nazismo. A Europa que forjou o direito, também
alimentou as ditaduras. A Europa que inventou a democracia, semeou o
colonialismo e o ideal do homem branco. Poderíamos ampliar essa lista a
exaustão.
Acredito que esses
altos e baixos não sejam claros para a maioria das pessoas, cativas de uma
imagem cristalizada de riqueza, elites, impérios, cultura erudita e altíssimo
padrão de existência. Esse cristal foi quebrado nas últimas semanas. Todos os
valores declamados ou impostos pelos europeus ao mundo se viram mudos ante a
violência, o descaso e a desumanidade com que crianças, homens e mulheres
refugiados ou imigrantes estão sendo tratados.
Estrangeiros expulsados
pela pobreza e pela guerra atraídos ou não pela imagem cristalizada encontraram
arames farpados, tiros, pancadas e morte, em um lugar que pensavam encontrar a
paz e a esperança. Roubadas de sua dignidade e tangidas do seu lugar pelo
desespero foram postas como nuas. Não há paz e esperança para o outro que
chega, somente para aquela exclusiva parte autointitulada europeia, nascida e
diferenciada.
Os discursos que
sustentaram a aliança multinacional de vários povos e línguas, confluindo na
União Europeia, sem igual em qualquer continente, sumiram. Restaram covardia e
medo do diferente. Egoísmo e incapacidade de compartilhar. Se até pouco tempo,
almejava-se a tolerância com aqueles que comiam sobras e farelos, até mesmo
estes são recolhidos em nome da xenofobia disfarçada em brigas conceituais
(imigrantes ou refugiados) ou explicitada no assassinato aberto e gratuito.
A Europa sempre foi
representada enquanto majestade coroada segurando um cetro, indicativos de seu
domínio e poder, cercada por animais e plantas domesticadas, assim era nas
gravuras de Marten de Vos e Adriaen Collaert (1600). Sentada e indiferente aos
seus irmãos em humanidade, a Europa morreu e consigo enterrou o vestígio de
civilização que ainda transmitia. Os Estados Unidos até meados dos anos 1990
ainda enganavam muita gente quanto a retórica de defesa dos direitos humanos e
da democracia. Ninguém, além dos manifestantes brasileiros de direita, acredita
nisso.
Em síntese, a profunda
separação entre os discursos e a prática concreta foi explicitada com crueza
nas semanas que passam. O mundo, se posso dizer assim, indignado vê os europeus
e americanos destruírem os regimes adversários nos países mulçumanos. O mundo
vê esses países caírem em guerras civis sanguinárias e insanas. O mundo vê
essas pessoas fugirem das guerras criadas pelos europeus e americanos. Os
americanos estão muito longe para serem incomodados com isso. Os europeus estão
muito pertos de tudo isso, mas, hipocritamente, fingem que o problema é do
mundo, criado por outros.
A inspiração não vem
mais da Europa e dos Estados Unidos, se um dia chegou a vir com verdade. A
inspiração por um mundo melhor hoje, não no futuro, vem da América Latina, vem
dos latino-americanos. O Papa Francisco se tornou uma força transformadora
dentro da Igreja e com muito empenho pessoal tem chacoalhado a instituição rumo
à sua vocação cristã original, a defesa intransigente dos mais pobres e a vida
sem opulência e corrupção.
Pepe Mujica, presidente
do Uruguai até o início do ano, se firmou como exemplo concreto de encontro
entre discurso e existência, raríssimo nos tempos de canalhice política
organizada que convivemos. Ao responder uma pergunta sobre o por que devemos
priorizar as relações entre os países da América Latina em detrimento dos
Estados Unidos e da Europa, Mujica responde o seguinte “No mundo que está por
vir, não há lugar para os fracos. Para que haja menos fracos, não há outro
caminho, temos que nos juntar. Nós, juntos, temos muitas possibilidades, muitos
recursos, muitas promessas, mas não somos uma realidade. Já passou da hora de
pensarmos como continente integrado, de pensarmos como um único país, não
podemos nos acomodar”.
Contra a intolerância,
a rejeição do diferente, a incapacidade de acolher, há que se pregar e fazer
respeito, acolhida e união. Mais do que apontar as hipocrisias, somos
desafiados a agir como forças transformadoras positivas, revitalizando o
próprio sentido de humanidade.
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