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Os professores são as novas bruxas

Jhonatan Almada, diretor do Ciepp


Nos últimos anos, a carreira e a formação de professores vêm sofrendo um esvaziamento progressivo. O programa Pé-de-Meia Licenciaturas, lançado pelo Governo Federal como uma tentativa de estimular a permanência e a conclusão nos cursos de licenciatura, chegou num momento em que a profissão docente vive uma de suas maiores crises. No entanto, sua formulação e implementação parecem não dialogar com as raízes desse problema.

É preciso reconhecer o cenário atual de desvalorização estrutural da carreira docente. Trata-se de uma percepção sustentada por evidências objetivas, como a histórica defasagem salarial dos professores em relação a outras profissões de nível superior — situação agravada por decisões recentes, como o pagamento de gratificações a militares que passam a atuar em escolas, substituindo educadores de carreira. Soma-se a isso um clima de desrespeito e insegurança nas escolas, como revela o mapeamento publicado pelo Ciepp sobre violações à liberdade de ensino, além dos diagnósticos recentes trazidos pelos relatórios internacionais: o Status Global dos Professores, da Internacional da Educação, e o Relatório Mundial sobre Professores, da Unesco.

Um caso exemplar é o do professor de História da cidade de Ilhabela, que ministrou uma excelente aula sobre a origem da humanidade a partir de mitos africanos e gregos, dialogando com obras de arte e culminando na música Oração ao Tempo, de Caetano Veloso. Uma aula inovadora em todas as dimensões. No entanto, não foi isso que importou para o vereador do PL que o perseguiu ou para a escola cívico-militar e a secretaria de educação, que não o defenderam. Os sindicatos e associações científicas se limitaram a publicar notas de repúdio. Nenhuma delas cogitou processar diretamente o vereador e as autoridades públicas que abandonaram o professor à própria sorte. Este caso evidencia que os professores são as novas bruxas dessa Idade Média rediviva.



Diante dessa realidade, não é difícil entender por que o incentivo financeiro do Pé-de-Meia não é suficiente para motivar os estudantes a permanecerem na carreira docente. Muitos ingressam nos cursos de licenciatura já com o plano de mudar de área. Os cursos tornaram-se, em larga medida, caminhos de transição para outras profissões. Um estudo do Inep publicado recentemente mostra que apenas um terço dos egressos de licenciaturas trabalha como professor um ano após se formar. O restante migra para outras carreiras no setor público ou privado, o que evidencia o descompasso entre formação e oportunidades profissionais. A ausência de concursos públicos e a opção recorrente por contratos temporários, sobretudo nas redes estaduais, apenas agravam esse quadro.

O Programa dá prioridade aos cursos presenciais e ignora o fato de que, atualmente, a imensa maioria das matrículas em licenciaturas ocorre na modalidade a distância — frequentemente demonizada, mas central para a expansão do ensino superior. Claro que há problema de qualidade desses cursos: será necessário construir uma nova regulação da EaD e avançar na qualidade, como se espera com a divulgação dos resultados do Enade Licenciaturas. Além disso, ao limitar o acesso aos estudantes de universidades que aderem ao Sisu, o programa exclui as instituições públicas estaduais — muitas de grande prestígio e com vestibulares próprios —, enfraquecendo seu alcance e efetividade.

Há ainda um problema prático, mas não irrelevante: o tempo. O Pé-de-Meia Licenciaturas foi anunciado em janeiro, durante o recesso acadêmico, o que comprometeu a divulgação entre os potenciais beneficiários. Soma-se a isso a escolha do nome, que repete o programa voltado ao ensino médio e pode ter causado confusão. Nomear um programa não é um detalhe.

Por fim, um elemento estrutural e simbólico: o programa desconsiderou as experiências já existentes de formação docente, como o PIBID e a Residência Pedagógica. Criados ao longo de anos, esses programas estabeleceram articulações sólidas entre universidades, escolas e estudantes. Aproveitá-las exigiria tempo, escuta e construção coletiva — três elementos que parecem ter faltado. O resultado é um programa que, em vez de se apoiar na experiência acumulada, se estrutura à revelia dela.

O Pé-de-Meia Licenciaturas é um passo na direção certa, ao reconhecer a evasão e a precarização da formação docente como problemas centrais. Mas sem encarar a fundo os fatores estruturais que afastam os jovens da docência — salários, respeito, condições de trabalho e carreira — qualquer solução tende a ser apenas paliativa.

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