Jhonatan Almada, historiador, integra o quadro técnico da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Refletir sobre a
alternância do poder, nos obriga a pensar sobre as consequências de quem nele
permanece por mais tempo que o recomendável, se apequenando ante a História
contemporânea, insaciável e desejoso de encarnar messianismos políticos. Quando
me tornei pai, preocupava-me que meu filho crescesse em um Estado tal como eu,
subjugado ao domínio de grupo político dirigido por uma família potente, a
envergonhar nossa origem. Ninguém lembra que somos o Estado de Maria Aragão,
Neiva Moreira, Jackson Lago, Manoel da Conceição, lembram apenas do Maranhão de
Sarney, nisso não há orgulho possível.
Em Repúblicas mais
antigas ou democraticamente avançadas, os ex-presidentes exercem um papel de
referência política e moral na sociedade, cuidam de suas fundações ou
institutos, dão palestras, se envolvem com organizações internacionais e adotam
essa ou aquela bandeira relevante para a comunidade internacional ou para seus
países de origem. Desconheço ex-presidentes que tenham persistido na arena
política exercendo mandato como José Sarney. Casos equivalentes nos Estados
Unidos, França, África do Sul ou mesmo na história recente do Brasil são
raríssimos ou até inexistentes. A saída do mandato permite que a influência se
mantenha pelo trabalho desenvolvido, pois os anos tendem a realçar o legado
positivo do governo e o respeito à experiência também se consolida.
A persistência, por
outro lado, transforma a influência em apadrinhamento e tentativas de acobertar
corrupção, os anos se tornam velhice decrépita e delirante, o legado negativo
do governo aparece como marca indelével e referência permanente. O descrédito e
os ataques crescem exponencialmente ao ponto de tornar o político uma figura
andrajosa e repugnante a ser evitada. Ao se alcançar a mais alta magistratura pública
(no sentido romano do termo), por coincidência, sorte ou voto popular, o foco
não é mais permanecer indefinidamente no poder (escorregando para a ditadura),
mas legar algo positivo que possa de fato ter contribuído para o enfrentamento
e solução dos problemas do país. Após o mandato, o ex-presidente volta-se para
o trabalho de preservar a memória do feito, influir no debate público e
representar a reserva moral do Estado-nação. A política com mandato não pode
ser mais opção, há que se dar lugar para as novas gerações e assumir atuação
mais livre das amarras dos partidos, das lealdades, paixões e jogos do poder.
Aqueles quadros de José
Sarney e família que os pintam em trajes monásticos ou sacerdotais não são mero
capricho, como as veleidades artísticas de George Bush filho. Eles representam
a visão particular do poder de seu titular, o poder como sacerdócio. Não o
sacerdócio que religa as coisas terrestres às coisas celestes pelas chaves
bíblicas, mas sim o sacerdócio egípcio, ou seja, aquele da mediação decisiva
que escolhe os que exercerão ou não exercerão o poder naquela quadra histórica.
A metáfora da política como casa de única porta, por onde se entra sem jamais
vislumbrar saída se encaixa perfeitamente nessa concepção.
Essa patologia do poder
se explica pelo fato de José Sarney não ter sido eleito para a Presidência da
República. Caiu ali por encarnar naquele momento a raposa maquiavélica como
ninguém. Não ter sido eleito pesou para sempre em sua subjetividade, o que se
materializou em luta infindável e infatigável por autoafirmação, reconhecimento
e imortalidade, a qual o consumou em vida. Ignorou as consequências dessa busca
como tão bem caracterizou Jorge Luís Borges no livro de contos “O Aleph”.
José Sarney poderia ter
sido registrado nos anais da História do Brasil como o homem da transição
democrática, somente. Isso se aceitando a tradição de reconhecer o político por
sua contribuição mais relevante no mais alto cargo exercido. Sua persistência
patológica no poder, o fez “um rei mal coroado”, como na música de Geraldo
Vandré e Geraldo Azevedo. Aquele rei cúpido prescinde do povo, o qual em última
instância é quem decide delegar sua representação e poder original a outrem.
Não é outra imagem, senão a daquele rei de Saint-Exupéry no livro “O pequeno
príncipe”. Aquele que reina solitariamente sobre ninguém, mas se acredita governante
universal. Alguém poderá arguir: apesar disso, rei.
Roseana Sarney foi uma
tentativa abortada e frustrada de sucessora. Sua frustração está no fato de que
jamais obteve algo por mérito próprio, mas graças à intervenção paterna. Aquela
resistência de Gilberto Gil a cantar Cálice pela opressão da figura paterna,
nunca constrangeu Roseana. O caminho à Presidência da República virou picolé,
essa abortagem a fez descarregar sua patologia pelo poder no Palácio dos Leões,
quatro mandatos arrancados a fogo dos maranhenses, dos adversários e das
providências de nossa justiça eleitoral à la manière de Gregório de
Matos. Essa patologia se exerceu sob as vistas impassíveis dos casebres no
mangue em frente ao Palácio dos Leões, do outro lado do braço de mar. Foi o
momento de maior delírio de José Sarney, se imaginou George Bush pai elegendo
George Bush filho.
Muitos estudos e
pesquisas ainda necessitam ser produzidos para compreender a verdadeira
consequência desse delírio para o Estado do Maranhão, sobretudo pelo tempo que
durou, práticas incorporadas, despotismos instituídos e trajetórias ceifadas.
Deixará saudades aos seus, especialmente aos que inventaram a anedota do
visitante, compartilhada por amigo fraterno. O visitante chegado pela primeira
vez a São Luís, olhando elevados e avenidas, dentre outras obras, pergunta ao
seu anfitrião quem os fez. O anfitrião passeia por toda a cidade (Aeroporto ao
Calhau) e a tudo responde: “Roseana que fez!”. O visitante pergunta se ela foi
prefeita da cidade. O anfitrião mais orgulhoso ainda diz que não: “Foi
Governadora do Estado!”. Essa realidade inventada e fantasiosa que fecha os
olhos ao enriquecimento ilícito e ao localismo elitista do feito será seu
legado desejado.
O legado real deixa
alguns rastros materiais e imateriais que são emblemáticos. Entre os materiais,
a frase no Plenário da Assembleia Legislativa, a Fundação da Memória Republicana
e a Fundação Nice Lobão. Entre os imateriais, a certeza da impunidade, a
miséria dos intelectuais maranhenses e a história ensinada nas escolas.
A frase pertence a José
Sarney ou a ele é atribuída: “Não há democracia sem Parlamento livre”. Fico
pensando qual mente subserviente teve essa ideia. Gravar a frase de alguém que
ainda vive, cujo poder se sustentou e se sustenta justamente nos jogos de
bastidores, nas decisões de cúpula e no voto de cabresto. A frase é um acinte a
própria Assembleia, sua permanência ali é testemunha muda, porém eloquente, do
quanto à maioria de deputados estaduais bancada pelo grupo dominante local é
obediente. São verdadeiros discípulos de Janjão que certamente não decepcionarão
o pai, como no conto de Machado de Assis.
A Fundação da Memória
Republicana representou a transferência do patrimônio privado acumulado por
José Sarney no exercício da Presidência e da vida pública (ninguém realmente
sabe a natureza desse acervo) para o Governo do Estado. É como se Fernando
Henrique Cardoso ou Lula da Silva transferissem seus Institutos ou Fundações
aos Governos de São Paulo ou Pernambuco, se contassem com filhos governadores.
A vergonhosa estatização significa que os Sarney não pensam em dispor de nenhum
centavo de sua riqueza familiar acumulada ao longo de décadas ou depender do
apoio de empresários. Essas opções foram descartadas ao passarem a conta para o
povo maranhense pagar, a retirada do nome do Patrono da Fundação sequer os
constrangeu.
A Fundação Nice Lobão
nasceu de um ato de inveja da então primeira dama do Governador Edson Lobão.
Inveja da Fundação José Sarney e pequenez da busca por equiparação de uma sócia
minoritária no jogo do poder. Em nome disso, criaram uma Escola sui generis no âmbito da rede estadual,
cujo trabalho não pode ser acompanhado ou fiscalizado por ninguém, nem mesmo a
Secretaria de Educação. A escola em si, o CINTRA, não representa qualquer
inovação pedagógica ou curricular. É apenas um feudo a serviço de outra família
potente, existe somente a dúvida de quem é o professor Raimundo da história e
se o salário continua o ó.
Nenhum dos Sarney, pai,
filha e demais membros serão punidos. A impunidade é certa. Alguns questionarão
a própria suposição de crime ou ilícito, afinal não existem provas, tão-só o
fogo do ódio de seus adversários a alimentar calúnias. Os eventuais processos
abertos ou arquivados não chegarão a termo. Vislumbro para José Sarney ou
qualquer um dos seus, o mesmo fim do coronel Ramiro Bastos, de Jorge Amado.
Numa doce manhã de luz azulada não descerá para tomar a xícara de café. No dia
seguinte, seu jornal e demais meios de comunicação convidarão para “o enterro
do inesquecível homem público, adversário leal e cidadão exemplar”. Morrerá
mandando, sem dúvida, sua voz ainda ecoa no Tribunal de Contas da União (TCU),
no Supremo Tribunal Federal (STF), no Senado Federal e nas urbes e campos do
Maranhão e do Amapá, em uns de forma tênue e tremida, noutros com o mesmo tônus
daquele jovem Governador que em 1965 prometeu libertar o Maranhão, escorando o
medo em Alexandre Costa ou sendo justificado por Bandeira Tribuzi.
Os intelectuais
maranhenses estão imersos na miséria da oligarquia como categoria e única
prática política local possível ou identificável. Se antes tudo se explicava
por José Sarney, depois pela oligarquia e por último, pelas práticas
oligárquicas, agora não há alternativa de organização política no Maranhão que
não seja oligárquica ou tentativa de criar nova oligarquia. Os artigos
publicados colocam isso em evidência, ruminam oligarquia e enxergam a história
como repetição farsesca e infinita. O pensamento único só o é quando dos
outros. Parece que a “A lei de ferro da oligarquia” de Robert Michels assumiu
caráter talmúdico para nossos intelectuais. Demorarão décadas para se recuperar
da forçada saída de cena de José Sarney.
Gerações de crianças
maranhenses da rede pública foram ensinadas com o livro “Terra das Palmeiras”,
ainda hoje em circulação. Nesse livro, só existem dois governadores: José
Sarney e Roseana Sarney. Todas as décadas que separam 1965 e 1994 se resumem a
poucas folhas sem atores políticos. Não há como reaver essas gerações ensinadas
ou deseducadas, menos ainda, voltar atrás no tempo. Esse fato inoculou na alma
maranhense a crença na superioridade, inteligência e prestígio dessa família, bem
como, dos acertos de suas decisões com o consequente progresso que a elas
seguiu-se. Mesmo sabendo que a baixíssima qualidade de nosso ensino público
atrapalhou a eficácia desse livro, o ocorrido é inescapável. Reverter esse
quadro levará no mínimo 12 anos, considerando-se o tempo da escolarização
básica.
Um governo eleito na
perspectiva da mudança precisa catalogar e desconstruir de forma cuidadosa esse
legado, não será tarefa fácil. Existem ações que para serem implementadas não
necessitam estar inscritas no programa de governo, mas são verdadeiros imperativos
éticos a se cumprir. Os herdeiros do grupo dominante tentarão impedir. Muitos
deles estão concorrendo nas eleições, nenhuma gota de constrangimento do peso
desse legado evitará suas tentativas de conseguir um mandato e atrapalhar o
máximo que puderem a governabilidade estadual.
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