O major: Bem sei, mas
a lei?
A comadre: Ora, a
lei... O que é a lei, se o Sr. Major quiser?
(Memórias de um
Sargento de Milícias, Manuel Antônio de Almeida)
Jhonatan Almada, historiador, integra o quadro técnico da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
A Lei Nº 6.454, de 24 de outubro de 1977 veda
a atribuição de nome de pessoa viva em qualquer modalidade a bem público de
qualquer natureza pertencente à União. Um raro avanço ocorrido na Ditadura
Militar em terras onde singra o patrimonialismo e a pessoalização da coisa
pública. Entretanto, esse avanço se restringiu ao âmbito da União, pois Estados
e Municípios desrespeitam essa lei, a qual se harmoniza com o princípio
constitucional da impessoalidade e da legalidade da administração pública.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na
Resolução Nº 58, de 8 de abril de 2008 interpretou a referida lei para burlá-la
e encontrar exceções onde não as há. Onde se lia “pessoas vivas” entenderam que
isso não incluía os aposentados e inativos do Poder Judiciário. Para muitos o
se aposentar pode significar a morte em vida, mas isso não é a regra e até para
o mundo mineral existe diferença abissal entre vivos e mortos. O corporativismo
imerso no patrimonialismo foi mais forte, a voz sedutora da comadre ainda toca
profundamente em nossas instituições. Somente dia 29 de março de 2011, o CNJ revogou
essa Resolução e não tratou mais do assunto.
O Art. 19, parágrafo 9º da Constituição
Estadual do Maranhão joga na contracorrente da lei ao abrir as tão conhecidas
exceções. É vedada a denominação, exceto para “pessoas consagradas notaria [sic]
e internacionalmente como ilustres”. Nessa contramão, entraram as denominações
de obras e prédios públicos, tais como, municípios, pontes, escolas, hospitais,
avenidas, passarelas, elevados, ruas e bairros com o nome de pessoas vivas.
Entre as mais conhecidas estão Alcione, José Sarney, Roseana Sarney, Sarney
Filho, Epitácio Cafeteira, João Castelo, João Alberto, Edson Lobão, Nice Lobão
ou Lourenço Vieira da Silva, todos vivos. Por outro lado, aparecem Kiola
Sarney, Sarney Costa, dentre outros.
Ainda que se possa argumentar que essas
pessoas tenham alguma contribuição para o Estado do Maranhão, seja política,
biológica ou cultural, não se justifica homenageá-las, sobretudo, perante
biografias tão questionáveis e questionadas. O problema não está no fato dessas
pessoas estarem vivas ou mortas, mas na constatação do flagrante desrespeito quanto
à legislação federal, mais ainda quando sabemos: a única coisa a justificar as
homenagens é a proximidade ou não dessas pessoas ao grupo dominante local seja
agora, seja antes, como parentes ou não.
Isso nos recorda o período imperial em que os
políticos poderosos mudavam seus nomes, recebiam títulos de nobreza que incorporava
na designação as cidades ou províncias de importância para sua vida pública. Época
dos Barões, Viscondes, Condes, Marqueses e Duques. O Barão de Alcântara, o
Visconde de Arari, o Barão de Anajatuba, o Duque de Caxias, são exemplos dessa
primeira apropriação do público pelo privado elevada a uma dimensão de domínio
nominal e vital sobre o território e o povo.
O tempo é fundamental para saber se tal
homenagem se sustenta, sem isso, trata-se de deslavada autopromoção baseada no
uso dos recursos públicos com alto risco para aqueles que homenageiam. Enquanto
vivas essas pessoas estão sujeitas a reveses e juízos de valor sobre aquilo que
fizerem. Discutindo essa questão nos Estados Unidos, Derek Alderman, geógrafo
cultural da East Carolina University
é taxativo: “seu legado ainda sequer foi estabelecido”, cita inúmeros casos de
políticos ainda vivos que deram seus nomes a prédios públicos ou rodovias e ao serem
investigados em escândalos de corrupção ou confessarem seu envolvimento, obrigaram
as instituições que haviam proposto as homenagens a retirá-las.
É importante compreender que esse problema
não se restringe ao Brasil, países como Estados Unidos têm debates em curso
sobre a questão, sem registrar, no entanto, uma legislação federal tão
expressiva e avançada quanto a nossa, sendo comum tal situação. Não se discute
as nomeações das Avenidas Getúlio Vargas ou do Aeroporto Juscelino Kubistchek,
essas biografias já passaram pelo escrutínio da história, onde o peso das
qualidades e de sua contribuição pública foi preponderante. Os legados desses
políticos estão estabelecidos.
A Lei Nº 11.597, de 29 de novembro de 2007
que dispõe sobre o Livro dos Heróis da Pátria estabelece o prazo de 50
(cinquenta) anos da morte do homenageado para que tal inscrição possa ser
efetivada e isso por intermédio de um projeto de lei. É um prazo razoável e
tranquilamente observável para que se façam propostas de tal envergadura histórica
no caso específico.
O caráter impessoal da coisa pública
experimentou nos últimos anos duas vitórias, a partir da ação de advogados
locais ou do Ministério Público Federal, identificados no combate ao
patrimonialismo e ao ranço oligárquico do Maranhão. A primeira vitória é a
retirada do nome “Governadora Roseana Sarney Murad” que batizava o prédio sede
do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. A segunda vitória é a determinação
de retirar o nome “José Sarney” do prédio sede do Tribunal Regional do Trabalho
da 16ª Região. É fundamental registrar a atuação cívica e meritória dos
advogados Josemar Pinheiro e Gilmar Pereira dos Santos que ingressaram com
ações populares para obrigar o Estado a retirar esses nomes desses prédios e de
todos os demais do Maranhão.
Existe um peso simbólico desses nomes a pesar
sobre a coisa pública, o presente e o futuro dos maranhenses. O deputado federal
Domingos Dutra em suas publicações já se referiu de maneira incisiva quanto a
esse fato. O nascer se dá na Maternidade Marly Sarney. O estudar se dá na
Escola Roseana Sarney ou CINTRA – Fundação Nice Lobão, instituição mantida pelo
Governo do Estado e praticamente autônoma até em relação à Secretaria de
Educação. O ir e vir se dá na Avenida José Sarney. O julgar se dá no Fórum
Sarney Costa. O morar se dá na Vila Kiola Sarney ou Sarney Filho. O viver se dá
no município Presidente Sarney ou Governador Edson Lobão. Isso nos leva a
compreender por que a imprensa nacional chama nosso estado de Sarneylândia.
O desejo de ver seu nome em uma obra pública
indica uma busca pelo consagrar-se, seja por ação própria ou de outrem. O
político que lança mão desse expediente almeja extrair tudo que puder de sua
passagem pela vida pública, prescindido até mesmo do julgamento dos seus
contemporâneos, basta-lhe o assentido de seu entourage e o silêncio cúmplice da maioria. Eleito num sistema em
que existem somente dois lados, no poder ou fora do poder, lhe é difícil
acreditar que seus sucessores (ou algo abstrato como a história) lhe farão
justiça pela atuação na vida pública, daí preferir homenagear a si mesmo.
Um governo eleito na
perspectiva da mudança não pode renunciar ao enfrentamento dessa questão. A
remoção dos nomes de pessoas vivas daquilo que foi pago com o dinheiro público
é ponto de honra e contribuirá sobremaneira para a construção de uma nova
subjetividade política no Maranhão, expulsando das vistas uma triste memória e
a mais visível herança simbólica do grupo dominante local.
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